Casos Clínicos

Reabsorção Radicular Interna – Relato de um caso clínico

Reabsorção Radicular Interna – Relato de um caso clínico

Drª Vanessa Pandolfi Pessotti

CD, Especialista em Endodontia pelo CEO – IPSEMG – MG, Mestre em Endodontia pela UERJ – RJ – Endodontia Microscópica

Resumo

A reabsorção interna representa uma pulpopatia de natureza inflamatória que se estabelece após uma agressão pulpar, com consequente necrose focal de odontoblastos associada a um quadro inflamatório crônico, mas sem perda da vitalidade pulpar. Para que a reabsorção interna ocorra, há necessidade da presença de um processo inflamatório pulpar crônico e, dessa forma, a polpa não poderá evoluir para a necrose. Sua etiologia está relacionada com traumatismos, cáries, pulpites crônicas e restaurações profundas. Como não apresenta sintomatologia, é diagnosticada através de exames radiográficos de rotina, onde observamos que o contorno dos limites pulpares sofre uma expansão relativamente simétrica, originando uma imagem radiolúcida, com aspecto de balão e contornos regulares. O presente artigo relata um caso de reabsorção radicular interna envolvendo a raiz de um dente incisivo superior esquerdo. Foi realizado o tratamento endodôntico em duas sessões, com o uso de medicação intracanal de Hidróxido de Cálcio, obturação convencional do terço apical com guta-percha, preenchimento da cavidade reabsortiva com Bio-C Repair (Angelus, Londrina, Brasil) e restauração em resina. Com o tratamento realizado, obteve-se um bom resultado clínico, permitindo a manutenção do dente no alvéolo.

Introdução

A reabsorção radicular é a perda de tecidos duros dentais como resultado de atividades das células tipo clasto (Patel 2007; Patel et al. 2010). Pode ser um fenômeno fisiológico ou patológico. A reabsorção radicular na dentição primária é um processo fisiológico normal, exceto quando ocorre a reabsorção prematuramente (Bille et al. 2007; Bille et al. 2008; Patel et al. 2010), enquanto que as reabsorções patológicas não são observadas de maneira natural em nenhuma fase de vida do indivíduo. De acordo com a superfície dentária afetada pode ser classificada em reabsorções internas, quando se iniciam nas paredes da cavidade pulpar; externas, quando se iniciam na superfície radicular externa; e interna-externa quando o processo reabsortivo se estabelece nas superfícies radiculares internas e externas, ocorrendo a comunicação entre as áreas de reabsorção. Geralmente, em casos de reabsorção interna-externa não é possível identificar em que superfície dentária se iniciou o processo (Consolaro 2012; Lopes & Siqueira Jr. 2010).

A reabsorção interna é considerada uma pulpopatia de natureza inflamatória, cujo processo gera uma resposta crônica do tecido pulpar (Patel et al. 2010). A patologia se origina no interior da câmara pulpar ou no canal radicular e é caracterizada por uma destruição da dentina que começa na polpa em uma parede dentinária, progredindo no sentido interno-externo. Ocorre no interior da cavidade pulpar, de uma forma centrífuga, em direção à superfície externa da coroa ou da raiz (Ferreira et al. 2007). Com a evolução da doença, pode ocorrer a perfuração da parede do canal radicular, levando a uma comunicação da polpa dentária com o periodonto. Radiograficamente, essa patologia é caracterizada por um alargamento radiolúcido uniformemente visível no canal radicular, com uma expansão relativamente simétrica de aspecto balonizante e contornos regulares (Consolaro 2012; Cohen & Hargreaves 2011).

Em condições fisiológicas a parede pulpar encontra-se protegida da ação dos clastos pela camada de odontoblastos e de pré-dentina, os quais impedem que eles contatem com a dentina mineralizada. Os odontoclastos são células multinucleadas que se fixam apenas nos tecidos mineralizados, destruindo-os se houver condições para isso. Para que ocorra a reabsorção radicular interna, a proteção externa da camada de odontoblastos e a pré-dentina da parede do canal radicular devem ser danificados, resultando na exposição da dentina mineralizada subjacente aos odontoclastos (Trope 1998; Patel et al. 2010).

Diversos são os fatores que causam as reabsorções internas, entre eles o traumatismo, cárie dentária, restaurações profundas e pulpite crônica (Lopes & Siqueira Jr. 2010; Patel et al. 2010). Nos traumatismos ocorre o deslocamento dos odontoblastos, expondo a dentina mineralizada à ação dos odontoclastos (Ferreira et al. 2007). Ocorrendo a exposição da superfície dentinária, os clastos aderem-se firmemente, por ação dos seus bordos em escova, criando um micro-ambiente próprio entre o clasto e a superfície mineralizada, desencadeando o processo de reabsorção (Ferreira et al., 2006). Nas pulpites crônicas associadas à cárie e às restaurações profundas, parte da camada odontoblástica está ausente, expondo a dentina mineralizada diretamente ao tecido conjuntivo pulpar. Nessas situações, essas áreas de exposição dentinária podem ser o ponto inicial das reabsorções internas (Consolaro 2012; Ferreira et al. 2007; Cohen & Hargreaves, 2011).

Henemann et. al. (2003) estudaram a prevalência da reabsorção radicular interna em dentes permanentes e sua localização na cavidade pulpar, valendo-se de um arquivo radiográfico com cento e quinze radiografias contendo esta patologia. Os resultados obtidos demonstraram que a maior prevalência ocorreu nos incisivos superiores e o terço médio do canal radicular foi a localização mais comum. Também, foi observado um número significativo de casos com presença de perfuração. Este resultado pode estar associado à maior presença de traumatismos nessa região do que em outras áreas, uma vez que o fator etiológico relacionado a traumatismo constitui o de maior destaque.

O diagnóstico das alterações pulpares exige uma abordagem sistemática do paciente, incluindo exame clínico, anamnese e exames complementares. A partir da interação entre esses fatores é possível identificar a doença e, dessa forma, estabelecer o plano de tratamento a ser executado. O diagnóstico precoce da reabsorção radicular interna é essencial para alcançar o sucesso no tratamento.

No estágio inicial, o raio X convencional não é eficiente para diagnosticar reabsorções radiculares (Prata et al. 2002). É muito importante fazermos uma boa radiografia periapical; e quando possível, solicitar uma tomografia computadorizada cone beam (TCCB) para confirmarmos o diagnóstico e avaliar se a reabsorção interna é comunicante ou não.

As reabsorções internas podem se localizar na porção radicular ou coronária do dente. Quando presente na coroa, a reabsorção interna, gradativamente, vai se aproximando do esmalte e por transparência evidencia-se a presença de um ponto ou área rosa ou avermelhada, sinal esse patognomônico dessa patologia (Consolaro 2012; Cohen & Hargreaves, 2011).

No tratamento de casos de reabsorção radicular interna, o Endodontista tem que realizar um preparo químico-mecânico rigoroso, buscando alcançar física e quimicamente, todas as paredes da reabsorção. Após a limpeza e modelagem, tanto o canal, como a cavidade reabsortiva devem ser obturados tridimensionalmente, visando prevenir a recontaminação bacteriana.

O objetivo deste trabalho é relatar um caso clínico de reabsorção radicular interna sem comunicação periodontal envolvendo o incisivo superior esquerdo, demonstrando que é possível obter um bom resultado clínico a partir de um diagnóstico precoce e um tratamento apropriado, permitindo a manutenção do dente no alvéolo.

Caso clínico

Paciente do gênero feminino, 44 anos de idade, compareceu ao consultório para realizarmos o retratamento endodôntico do dente 22. Fizemos a radiografia inicial para avaliarmos o dente 22 e nos deparamos com uma imagem radiolúcida em forma de balão, caracterizando uma reabsorção radicular interna no dente 21. Fizemos então, uma nova radiografia para avaliação do dente 21 (FIGURA 1).

FIGURA 1 – Radiografia inicial
Durante a anamnese a paciente relatou ter sofrido uma cabeçada do filho dois anos atrás. O exame clínico revelou presença de faceta de porcelana no dente 21, teste de sensibilidade pulpar positivo, ausência de sintomatologia e ausência de alterações na mucosa gengival. Solicitamos uma tomografia computadorizada cone beam (FIGURAS 2, 3 e 4) para confirmarmos o diagnóstico, avaliarmos se a reabsorção era comunicante ou não e para estudarmos a estrutura dental radicular remanescente.

FIGURA 2 – Imagem tomográfica – corte coronal

FIGURA 3 – Imagem tomográfica – corte axial

FIGURA 4 – Imagem tomográfica – corte sagital

O uso da TCCB pode ser inestimável no processo de tomada de decisão. Os dados digitalizados fornecem ao clínico uma apreciação tridimensional do dente; a extensão e localização da reabsorção; a anatomia adjacente; a presença ou não de perfurações radiculares e permite avaliarmos se a lesão é passível de tratamento (Tyndall 2008; Patel et al. 2010).

Após a análise clínica, radiográfica e tomográfica, estabeleceu-se o diagnóstico de reabsorção radicular interna, sem comunicação externa, o que torna o prognóstico mais favorável.

Iniciamos a terapia endodôntica do dente 21. Após o acesso, o canal foi irrigado com Hipoclorito de Sódio a 5 %, seguido de EDTA a 17%, ambos com PUI e Easy clean. Através do uso do microscópio operatório, foi possível visualizar a extensão da cavidade reabsortiva (FIGURA 5). Durante o preparo químico-mecânico fizemos uma irrigação abundante com substâncias químicas auxiliares com capacidade solvente orgânica efetiva e ponta de ultra-som esférica para remover e diluir o tecido pulpar remanescente.

FIGURA 5 – Cavidade reabsortiva

Dada à inacessibilidade das paredes das reabsorções radiculares internas, o desbridamento, preparo químico-mecânico e a ativação ultrassônica de irrigantes deve ser vista como uma etapa essencial na desinfecção do defeito interno da reabsorção. No entanto, mesmo com o uso de instrumentos ultrassônicos, as bactérias, nos casos infectados, podem permanecer em áreas confinadas. Assim, um medicamento antibacteriano intracanal deve ser usado para melhorar a desinfecção das paredes inacessíveis (Burleson et al. 2007; Patel et al. 2010).

Em seguida, o canal foi preenchido com uma pasta de Hidróxido de Cálcio P.A. (pró-análise) com soro fisiológico (FIGURA 6) para cauterizar quimicamente o tecido, que porventura ainda estivesse presente na cavidade e para promover a necrose de todas as unidades osteorremodeladoras em função de seu alto pH e alcalinização do meio cessando, dessa forma, a atividade clástica.

FIGURA 6 – Medicação intracanal

Na segunda sessão, 15 dias após, realizamos a obturação convencional do terço apical do canal com guta-percha, preenchimento da cavidade reabsortiva com Bio-C Repair (Angelus, Londrina – Brasil) (FIGURA 7, 8 e 9), condensando-o contra as paredes com condensadores específicos e bolinha de algodão umedecida e realizamos o selamento coronário com resina.

O Bio-C Repair é um cimento reparador biocerâmico pronto para uso. É composto de silicato de cálcio, aluminato de cálcio, óxido de cálcio, óxido de zircônio, óxido de ferro, dióxido de silício e agente de dispersão. O Bio-C Repair apresenta características superiores de adaptação marginal, biocompatibilidade, excelente radiopacidade e capacidade seladora em ambientes úmidos. Além dessas características, tem como grande vantagem a sua facilidade de inserção à cavidade reabsortiva.

FIGURA 7 – Bio-C Repair (Angelus, Londrina – Brasil).

FIGURA 8 – Radiografia final

FIGURA 9 – Cavidade reabsortiva preenchida com Bio-C Repair

Conclusão

É de suma importância realizar com atenção uma boa anamnese, exames clínicos e complementares. Pois, quanto mais precoce for o diagnóstico da reabsorção radicular interna, melhor será o prognóstico, diminuindo o risco de fragilização da estrutura dentária. É possível obter um bom resultado clínico a partir de um diagnóstico precoce e um tratamento apropriado, permitindo a manutenção do dente no alvéolo.

Referências

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  2. Bille ML, Nolting D, Kvetny MJ, Kjaer I. Unexpected early apical resorption of primary molars and canines. Eur Arch Paediatr Dent 2007; 8:144–9.
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  4. Cohen S, Hargreaves KM. Caminhos da polpa. 10. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. 928 p.
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  6. Ferreira, MM, Carrilho, EVP, Leitão J. Mecanismo e classificação das reabsorções radiculares. Rev. Portuguesa de Estomatol. Med. Dent. Cir. Maxilofac. (Elsevier Doyma), v. 47, n. 4, 2006.
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  8. Henemann, BM et al. Reabsorção dentinária interna: um estudo da prevalência em dentes permanentes. Stomatos, Canoas, v.9, n.16, 2003.
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  12. Prata, MIA, VILLA N, Rodrigues, HA, Cardoso, RJA. Avaliação da reabsorção radicular apical externa e interna em dentes com lesões periapicais. JBE, Curitiba, v.3, n.10, p.222-28, jul./set. 2002.
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